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é na ZEIS

Manhã do dia 16 de maio de 2020, primeiro dia de implementação das medidas rígidas de quarentena na capital pernambucana, e nas páginas de um jornal de grande circulação na cidade é publicado o artigo intitulado “É na ZEIS”, que de modo afirmativo, se insere na corrente disputa de narrativas sobre a relação entre os territórios vulnerabilizados da cidade e a pandemia do novo Coronavírus. Este toma o lado da evocação saudosista de práticas higienistas no planejamento e gestão das nossas cidades, responsáveis por posturas que enxergam estas áreas como problemas a serem eliminados. Mas favela não é problema, nem solução. Ela é a condição possível para as maiorias sociais e minorias de direitos no Brasil.

 

Por meio deste escrito, redes, ONGS, entidades de classe, movimentos populares e associações comunitárias, vêm estabelecer os contrapontos e negritar que o conteúdo do referido texto não representa o entendimento de quem luta por direitos humanos e pela não discriminação de parte da população que construiu o seu lugar na cidade e resiste às adversidades e omissões históricas de políticas públicas.

 

O texto inicia com a constatação de que “A favela, a periferia, atualmente no Urbanismo se denomina ZEIS - Zona Especial de Interesse Social”. As ZEIS configuram instrumento urbanístico, integrante do Zoneamento Urbano, conquistado a partir da luta de moradores de territórios populares e associações comunitárias por reconhecimento e inclusão no planejamento formal das cidades, como forma de impedir a apropriação dos territórios pelo mercado imobiliário. Exatamente por isso, frequentemente este instrumento tem sido atacado por profissionais e entidades representativas desse setor, na tentativa de fazer com que áreas como Coque, Coelhos e Brasília Teimosa passem a comportar edifícios empresariais e habitacionais para outras classes sociais. O “perigo” iminente da expansão e adensamento destas áreas, mencionado no texto, coloca como responsáveis os moradores das comunidades e não o Estado, que historicamente os negligenciou nas políticas públicas e os submeteu a uma situação de vulnerabilidade, que hoje dificulta o isolamento social em seus locais de moradia e vida.

 

Para além da aparente e oportuna confusão terminológica, outro ponto que causa espanto no artigo publicado é a dispensa de embasamento dos dados trazidos, que são mencionados, a revelia, sem que sejam apresentadas suas fontes, conferindo à nota do autor arquiteto um caráter meramente opinativo. Afirmações como “É na Zeis o centro da pandemia” precisariam estar respaldadas por estudos e levantamentos atualizados. Ao trazer as ZEIS como centro do problema, a visão higienista que, por vezes, reforçou o discurso de que a precariedade habitacional precisa ser removida da cidade, acaba demonstrando a intencionalidade da utilização do termo ZEIS.

 

Se tomarmos como referência as últimas matérias de jornal da mídia local e os dados que foram disponibilizados pela Secretaria de Planejamento do Governo do Estado de Pernambuco, é possível identificar que, ao contrário do que foi veiculado, o principal foco de casos confirmados do novo Coronavírus no Recife foi, por muito tempo, o bairro de Boa Viagem, das Graças e da Madalena. Ocorre que, com a disseminação desse vírus, as desigualdades sociais já existentes ficam escancaradas sobre o território. Como também ficou escancarada a omissão dos poderes públicos em implementar políticas públicas de habitação. A partir de dados publicados pelo IBGE e pela Prefeitura da Cidade do Recife, que apontam Boa Viagem como bairro com mais casos notificados, o bairro onde há maior letalidade é Afogados, uma situação que pode ser explicada pela determinação social de doenças, que reflete não só a precariedade dos serviços públicos neste e em outros bairros populares, como também a falta de medidas focadas aos mais vulneráveis para o enfrentamento de uma pandemia como a que vivemos.

 

Frases como “O desemprego crescente associado à ausência de perspectiva deságua na escolha entre ficar em casa para o vírus não chegar ou ir pra rua pra matar a fome que lá já está” nos trazem indignação, pois sabemos que não há escolha numa situação dessas. Narrativas como a que está em análise, apenas contribuem para um olhar deturpado do cerne do problema, que certamente, não é na ZEIS, e sim a seletividade ou a falta de compromisso do poder público em reduzir desigualdades.

 

Diante da emergência de discursos discriminatórios e opressores, nós acreditamos que a disseminação de informação pública exige seriedade e responsabilidade com os fatos. A cidade pós pandemia está em disputa agora e esse tipo de opinião contribui para um "vale a pena ver de novo” de posturas higienistas no planejamento e gestão das cidades que nos recusamos a assistir novamente. A cidade pós pandemia exigirá uma gestão pública comprometida em reduzir o “déficit de cidade” existente para os menos favorecidos. Exigirá políticas públicas de geração de renda. Exigirá, mais do que nunca, respeito e compromisso.

 

É na ZEIS que meninas e meninos brincam na rua, onde tem gente andando e conversando nas calçadas todas as horas do dia. É na ZEIS que o Estado se esquiva de garantir água e esgoto, de realizar ações de assessoria técnica e de melhoria habitacional. Também é na ZEIS e em outras localidades onde o Estado chega de forma insuficiente que há uma enorme rede de solidariedade e apoio no enfrentamento ao novo Coronavírus e a todas as formas de culpabilização de quem é vítima de um sistema excludente. Se existe cidade possível no futuro, é a cidade que radicaliza direitos, que tem a democracia e a justiça socioespacial como guias. E é na ZEIS que que a cidade do futuro tem grandes chances de encontrar sua efetivação.

assinam esta carta

 

○ Articulação de Mulheres de Bairros ○ Associação de Moradores de João de Barros ○ Associação de Moradores do Campo do Vila ○ Caranguejo Uçá da Ilha de Deus ○ Centro Cultural Cambinda Estrela ○ Centro de Ensino Popular e Assistência Social de Pernambuco Santa Paula Frassinetti (CEPAS) ○ CCLF- Centro de Cultura Luís Freire ○ CDC - Centro de Desenvolvimento e Cidadania ○ Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec) ○ Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH) ○ Cidadania Feminina ○ Coletivas ○ Coletivo de Mães Feministas Ranusia Alves ○ Coletivo de Mulheres Casa Lilás ○ Coletivo de Mulheres de Jaboatão ○ Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste ○ Coletivo Força Tururu ○ Coletivo Jardim Resistência ○ Coletivo Massapê ○ Coletivo M1 ○ Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM) ○ Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (CAUS) ○ Coque (R)existe ○ Equipe Técnica de Assessoria, Pesquisa e Ação Social (ETAPAS) ○ Escambo Coletivo ○ Escola de Formação Quilombo dos Palmares (EQUIP) ○ Espaço Cultural de Santo Amaro ○ Espaço Mulher de Passarinho ○ Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) ○ Fórum de Mulheres de Pernambuco ○ Grupo AdoleScer ○ Grupo Mulher Maravilha ○ Habitat para a Humanidade Brasil (HABITAT) ○ Ibura Mais Cultura ○ Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) ○ Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento Pernambuco (IAB-PE) ○ Movimento de Luta nos Bairros e Favelas (MLB) ○ Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST) ○ Movimento de Luta Popular e Comunitária (MLPC-PE) ○ Movimento Ocupe a Praça Camaragibe ○ Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP) ○ Observatório das Metrópoles ○ Observatório Popular de Maranguape I ○ Rede Nacional de Pessoas que Vivem com HIV e AIDS ○ Rede de Coletivos Populares de Paulista ○ Rede de Mulheres Negras de Pernambuco ○ Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas ○ Rede Solidária em Defesa da Vida - PE ○ Segmento Popular do PREZEIS ○ Sociedade Olindense de Defesa da Cidade Alta (SODECA) ○ Somos Todos Muribeca ○ União de Moradores de Três Carneiros

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