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A Batalha dos Guararapes e a (in)dissociabilidade entre edifício e bens culturais integrados

por Mary Rached, Natália Vieira e Bia Meunier | Comissão de Patrimônio do iab.PE

   Na quinta-feira, 26 de agosto, o Grupo Santander apresentou ao Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural (CEPPC) uma proposta para a transferência do mural “Batalha dos Guararapes”, instalado no Edifício Tiradentes, no bairro de Santo Antônio, para uma agência do banco no bairro de Boa Viagem.

   Situado na Avenida Dantas Barreto, o Edifício Tiradentes, antigo Banco da Lavoura de Minas Gerais, abriga uma agência Santander em seu pavimento térreo. É na sua fachada lateral, voltada para a Rua das Flores, que se encontra o mural de autoria de Francisco Brennand, parte integrante do edifício e da paisagem urbana do bairro de Santo Antônio desde 1963.

   Sob a argumentação da má conservação do painel e da “degradação” (sic) do seu local de instalação, o Grupo Santander propõe a retirada da obra do seu contexto urbano original a fim de exibi-la em outro local, valendo-se da promessa de segurança permanente e da implantação de equipamentos urbanos que a valorizem. A proposta de realocação acende o debate sobre a conservação do patrimônio em áreas centrais deterioradas e sobre bens culturais integrados à arquitetura, além de reforçar disparidades socioeconômicas e o privilégio dado a determinadas localidades em detrimento a outras.

   A relação entre arquitetura e artes plásticas é uma das razões do reconhecimento internacional da Arquitetura Moderna Brasileira. Artistas e arquitetos colaboravam para a integração das artes e, em Pernambuco, esta cooperação existiu com uma intenção de tornar a arte acessível e inclusiva, premissa abordada pelo Ateliê Coletivo, grupo de artistas do Recife criado por Abelardo da Hora na década de 1950, que considerava que a história e a arte deveriam estar registradas nas edificações, permitindo a difusão do conhecimento à população. Nesse contexto, Recife recebeu inúmeros obras de arte em seus edifícios e, mais tarde, a prática se tornou letra com a Lei Abelardo da Hora em 1961.

   O Edifício Banco da Lavoura de Minas foi concebido pelo arquiteto paulista Álvaro Vital Brazil, sendo este seu único projeto em Pernambuco. O painel Batalha dos Guararapes, por sua vez, é de autoria do artista plástico pernambucano Francisco Brennand, contratado para executar o mural na fachada lateral do edifício, aberto para a cidade, no qual representa a história da Batalha do Guararapes de forma pedagógica, retratando cenas do embate que se revelam à medida que o transeunte se desloca, sob o ponto de vista dos heróis anônimos. Destaca-se o justo enquadramento do painel ao longo da fachada do edifício, evidenciando intenção plástica e relação compositiva: a obra está subordinada à dimensão da edificação e a narrativa é construída a partir do passeio dos transeuntes pela Rua das Flores.

   Este conjunto, painel e edifício, faz parte de um importante conjunto de Arquitetura Moderna do bairro de Santo Antônio. Outros edifícios modernos do bairro também apresentam painéis cerâmicos como bens integrados e constituem, junto com a “Batalha dos Guararapes”, um circuito de obras de arte, como o painel “Abolição da Escravatura” de autoria do artista plástico Abelardo da Hora, no Edifício Joaquim Nabuco, e o mural “O Grande Floral”, também de Francisco Brennand, em edifício situado na Rua do Sol.

   É preciso observar que o painel se comporta como a pele do edifício. A própria essência das peças cerâmicas revela que não se trata de uma pintura de cavalete passível de realocação para ser exibida em outro local: o caráter do suporte cerâmico demonstra a sua indissociabilidade do objeto e do espaço - no caso, do Edifício Tiradentes e da Rua das Flores.

   São lançados, então, os seguintes questionamentos: a quem pertence o painel, ao Santander, ao condomínio, ou ao edifício e à rua, para os quais o painel foi desenhado? Vandalismo é argumento para a realocação de uma obra? Por que a agência do banco em Boa Viagem oferece maior segurança? Não existe interesse em promover a segurança na agência do bairro de Santo Antônio? Por que na parte externa de outra agência de um mesmo grupo o painel vai deixar de ser vandalizado? Não seria o caso de tratar da sua preservação e valorização enquanto bem público patrimonial, a partir da requalificação da sua implantação original?

   Lançar estas questões não significa insistir em posicionamentos radicais de preservação, mas trazer à luz as possíveis consequências de uma abordagem que compreende os bens integrados como obras autônomas. Há o risco de comprometer tanto o mural quanto o edifício e o espaço público onde está inserido, na medida em que retira do conjunto a possibilidade de conectar o público ao seu acervo cultural e sua própria história.

   Diante do exposto, o Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento Pernambuco (IAB-PE), a partir de sua Comissão de Patrimônio, bem como as entidades que endossam este documento, se manifestam contrários à solução apresentada e recomendam que as medidas a serem adotadas tomem por princípio a indissociabilidade do edifício e os bens culturais a ele integrados.

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